The trees and the blues
In the first shot of Oráculo, a metal bridge is framed by waving palm trees in the foreground, shaken by the same wind that allegedly fascinated Georges Méliès when he first watched a Lumière film. The contrast between foreground and background carves a gestalt between the idyll of an long-lost ethnographic present, and the imposing centrality of modern engineering – by now, equally coded as an emblem of another era. Shot on 16mm, the view oscillates between the pro-filmic landscape and the materiality of the footage itself. The variation of light and the pronounced scratches and stains creates what Jamie Baron calls “the archive effect” – a confluence of material codes that leads the audience to wonder if they are before an excerpt from an early travelogue (but wait: there is sound?). At the same time, it’s hard not to notice how the colors twist this landscape out of naturalism: the clouds get lost in a fog of highlights, while the shadows shake in different shades of blue.
To those already familiar with the past work by Melissa Dullius and Gustavo Jahn, the deep blue trees of this opening shot come as no surprise. For the past couple fifteen years, the German-based Brazilian duo who also work under the name Distruktur have developed a body of work – which is in great part available online – exploring the creative possibilities of cinema’s materiality, especially photochemical 16mm film. In short films like Cat Effekt (2010) and Triangulum (2008), the duo have employed different material resources – from using expired film to embracing or encouraging inaccuracies in the developing process – as a way to push film beyond indexicality, and curb documentation toward deformation.
However, what comes after this opening shot – which also contains the opening title card – is more surprising in the context of their previous work. Clean and direct in its use of 16mm film, Oráculo is a collection of long takes that seem to be defined by the length of a 16mm reel, using running time as a frame that allows the filmmakers to explore different possibilities of cinematic construction. The surprise comes not so much from the less self-evident use of photochemical film – an approach they had already used in films like In the Traveler’s Heart (2013) and in the recent black and white short Levantado do Chão (2020), also screening at Mostra de Tiradentes – but from the programatic use of duration as canvas, and all the expressive possibilities that time can afford.
In this world of variety, the deep blue trees are, therefore, one among many formal devices that will come up in this relentless unraveling of the cinematic shot itself as an expressive unit. In some cases, the expression will come through a more upfront manipulation of the scenic space – such as the use of allegorical archetypes in shots #2 and #4, or the camera movements in shots #2, #3 and #6, my favorite in the film – or in the insertion of an extraneous sound element – such as music, in shot #2, and voice-over narration in shot #3. In others, the expressive change will hide under the subtleties of prolonged time – a progressive light change, in the last shot, or the smooth dissolve of the sounds of birds into a light drone in shot #3.
Showing the filmmakers much more at ease with the feature-length format than Muito Romântico (2016), Oráculo is narratively tied together by heterogeneity. Every shot seems to both inaugurate and exhaust its own representational regime, and the unity between the shots is exterior to the shots themselves. Is the film simply a collection of dissonances? What is the narrative thread that ties all these gestures, actions, and views? Why have they been spliced together? The question is, itself, the answer. By filtering elements that appear to belong to different narrative worlds (all connected by the same sea) – from Glauber Rocha’s Der Leone Have Sept Cabeças (1970) and Júlio Bressane’s Tabu (1982) to Philippe Garrel’s The Inner Scar (1972) and James Benning’s California trilogy (2000-1) – through their own easily-recognizable artistic sensibility, Dullius and Jahn bring out the mystical in the prosaic, patiently teasing – and not more than teasing, in the careful way one approaches a fleeting creature – the drama of microscopic particles that remains latent in the view. Oráculo is a naturally uneven and productively impure return to Lumière – a fairly counterintuitive gesture for ilmmakers that have always seemed to film from the vantage point of the end of the world.
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The trees and the blues
No primeiro plano de Oráculo, uma ponte de metal é emoldurada por palmeiras que balançam ao vento no primeiro plano – o mesmo vento que teria fascinado Georges Méliès quando assistiu pela primeira vez um filme de Lumière. O contraste entre primeiro e segundo planos cria uma gestalt entre o idílio de um presente etnográfico há muito tempo perdido, e a centralidade imponente da engenharia moderna – a esta altura, código igualmente inequívoco de uma outra era. Rodada em 16mm, a vista oscila entre a paisagem pró-fílmica e a materialidade da própria filmagem. A variação de luz e os arranhões e marcas pronunciados sobre a imagem criam o que Jamie Baron chama de “o efeito arquivo” – uma confluência de códigos materiais que leva o espectador a se perguntar se não está, de fato, vendo um trecho de um antigo travelogue (mas calma: há som?). Ao mesmo tempo, é difícil não perceber como as cores retorcem a a paisagem de seu naturalismo: as nuvens se desfazem em uma névoa de altas luzes, enquanto as baixas vibram em diferentes tons de azul.
Para aqueles já familiarizados com o trabalho anterior de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, as árvores azuis deste plano de abertura não são exatamente uma surpresa. Ao longo dos últimos quinze anos, o duo de cineastas brasileiros radicado em Berlim que também trabalha sob a alcunha de Distruktur vem desenvolvendo uma obra – em grande parte disponível online – explorando as possibilidades criativas da materialidade cinematográfica, especialmente da película 16mm. Em curtas como Cat Effect (2010) e Triangulum (2008), a dupla se esbalda em diferentes fontes materiais – do uso de filme vencido à incorporação e radicalização das imperfeições do processo de revelação – como forma de empurrar a película cinematográfica além da indexicabilidade, e entortar a documentação rumo à deformação.
No entanto, o que vem após o plano de abertura – que é também o crédito inicial – é mais surpreendente, levando em conta a obra pregressa dos cineastas. Limpo e direto no uso do 16mm, Oráculo é uma coleção de planos longos que parecem delimitados pela metragem do rolo da película, usando a duração como a moldura que permite aos cineastas explorar diversas possibilidades de construção cinematográfica. A surpresa, portanto, vem não tanto do uso menos auto-evidente do filme analógico – abordagem já presente em filmes como In the Traveler’s Heart (2013), e no recente curta em preto-e-branco Levantado do Chão (2020), também na programação da Mostra de Tiradentes – mas do uso programático da duração da película como canvas, e de todas as possibilidades expressivas que só o tempo pode trazer.
Neste mundo de variedade, as árvores azuis são apenas um entre outros diversos recursos formais empregados nesse desenrolar obsessivo do plano cinematográfico como unidade expressiva. Em alguns casos, a expressão será alcançada por meio de manipulações mais ostensivas do espaço cênico – como no uso de arquétipos alegóricos nos planos #2 e #4, e de movimentos de câmera nos planos #2, #3 e 6#, o meu favorito em todo o filme – ou na inserção de sons não-diegéticos – a música, no plano #2, e a narração em voz-over no plano #3. Em outros, a mudança expressiva se esconderá sob as sutilezas do tempo que passa – uma mudança progressiva de luz, no plano final, ou o fade progressivo do som dos pássaros que desaguam em um trono, no plano #3.
Muito mais à vontade com o formato de longa-metragem do que Muito Romântico (2016), Oráculo é costurado narrativamente por uma linha de heterogeneidade. Todo plano parece simultaneamente inaugurar e esgotar seu regime representacional, e a unidade entre os planos é também exterior à diegese. Será o filme uma coleção de dissonâncias? Qual é o fio narrativo que conecta todos esses gestos, ações, e visões? Porque eles foram reunidos na montagem? A pergunta é, ela própria, a resposta. Ao filtrar elementos que parecem pertencer a mundos narrativos radicalmente diferentes (mas todos conectados pelo mesmo mar) – de Glauber Rocha e seu Der Leone Have Sept Cabeças (1970) e o Tabu (1982) de Júlio Bressane, à Cicatriz Interior (1972) de Philippe Garrel e à trilogia da Califórnia (2000-1) de James Benning – em sua própria singularidade artística, Dullius e Jahn ressaltam o místico no prosaico, atiçando pacientemente – e nunca mais do que atiçando, com o cuidado com que se aproxima de uma criatura arredia – o drama das partículas microscópicas que vive latente na vista. Oráculo é um retorno naturalmente desigual e produtivamente impuro a Lumière – gesto um tanto contraintutivo para cineastas que sempre pareceram encarnar o ponto de vista do fim do mundo, mas que aqui encontram um espaço – uma pequena dobra, que seja – onde a certeza de quem ora equivale ao desejo de quem vê.
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