* The film is featured at Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba, Brazil.
The dammed
In a landmark essay originally published in 1976, Canadian critic Robin Wood suggested that horror cinema was the arena where American society exercised what Freud called “the return of the repressed.” For Wood, “in examining the evolution of a genre one finds oneself studying the evolution of civilization’s unconscious; horror films are our collective nightmares.” Therefore, cinema expressed precisely what that specific community worked hard to avoid. In this spiral of self-denial, horror provided the only suitable face.
Pedro Diógenes’ Pajeú starts out as a horror film about its own local collective nightmare: Maristela (Fátima Muniz), a teacher who lives and work in Fortaleza, Ceará, is stopped on her way to work by a vision of a monstrous deity in the Pajeú creek. While Wood saw the American horror film as the quintessential expression of the (sexual, social, political) failure of American society, and the desire to start a new one from scratch, in Pajeú the repressed finds an etymological kinship in the term “represa,” or “dam”: once a location that played a central role in the origin of Fortaleza – a city built on its banks – the creek had since been brutally regulated, forced to hide in underground tunnels, becoming a living metaphor for the repression of Fortaleza’s own colonial nightmare.
In Pajeú, the repressed gets both an indexical representation – the river itself – and a mythological one – the monster. The river’s indexicality, however, is itself palimpsestic. Once the central feature of the city’s aesthetic, the Pajeú is now mostly remembered when it overflows during rainy seasons, reclaiming a course pushed around by history, spreading the smells generations worked hard to confine to the bowels of urbanization. However, its mythological face is no-less expressive. Dressed in a long gown that blends perfectly with the sewage that floats on the surface of the creek, the unidentified creature that appears to Fátima wears a blonde wig – a prop that recalls both the key presence of the Dutch in colonizing those waters (Fortaleza literally translates as “fortress,” built around the Fort of Schoonenborch, which had been erected by the Dutch West Indies Company by the Pajeú in the early 1600s) and the Cuca, a famous fictional witch written by the popular author of children’s book and known eugenist Monteiro Lobato, in 1921.
This two-fold literalization of the repressed matches the recent emphasis on what used to be the intellectual subtext in modern horror as one quality distinctive enough in contemporary horror to have demanded numerous attempts at a specific terminology – art-house horror, post-horror, elevated horror, etc. Such a radical inversion in the internal balance of the genre contradicts Wood’s original reading of it. For horror to work, “the repressed must not be immediately recognizable as such… hence the need for disguise; hence also its tendency to erupt within contexts we don’t take seriously, despise, laugh at, where it can evade our scrutiny.” Part of the effectiveness of the genre has been its ability to pass as mere entertainment; the moment that the subtext graduates to become the text, horror is replaced by the performativity of horror – a self-aware discourse that is more invested in the critical legacy and intellectual interpretation of the genre than in the visceral reaction that unclogged the repressed. The subtext can act; the text, on the other hand, can only talk about it. Or, in the case of Pajeú, the subtext can dance what the text can only sing: a karaoke version of A-ha’s “Take on Me” sung in Portuguese.
At first, Diógene’s film appears to fit this pattern, literalizing the colonial past in the monstrous creature in the creek – a monster that does not chase, haunt, or kill. However, as the allegorical becomes concrete, and the subtext of the film is rendered clearer and clearer, Diógenes pushes the film off its tracks, and abandons horror altogether. There are quite a few historical examples of institutional films that have led to full-on horror films (Shirley Clarke’s 1960 UNICEF advertisement A Scary Time is perhaps the most well-rounded example); but it’s hard to think of many horror movies that ended up becoming institutional documentaries.
Pajeú starts out as a myth, but its ultimate goal is to retrieve history. The initial horror gives way to a documentary about the history of the river, clashing conflicting accounts and mapping out the different relationships other citizens have established with it, until it ultimately morphs into an archaeological news report, where the lead character hangs out in one of the city’s many beaches, asking the locals what they know about the river, creating an uncanny interaction between the real and the fictive reminiscent of Jorge Bodanzky and Orlando Senna’s Iracema – Uma Transa Amazônica (1975).
This operation is so eerily unradical that it makes the film paradoxically more unsettling. While recent noteworthy features like Kleber Mendonça Filho and Juliano Dornelles’ Bacurau (2019) and Juliana Rojas and Marco Dutra’s Good Manners (2017) stretched the conventions of the genre to express the many afterlives of colonialism, here it is the genre itself that is held up for investigation, as if the catharsis of horror was intrinsically denied by the undocumented monstrosity that constitutes the present. In its strange irregularity, Pajeú suggests a disturbing possibility: since the self-appeasing violence of Brazilian history hides just below the skin, horror might just be digging too deep. In a society where the subtext of violence is no longer afraid of the sun, the repressed may return not as horror, but as documentary.
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* O filme está na programação do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Cinema de Curitiba.
O retorno do represado
Em um artigo fundamental publicado em 1976, o crítico canadense Robin Wood sugeriu que o cinema horror era a arena pública em que a sociedade norte-americana praticava o que Freud denominou “o retorno do recalcado” – “the return of the repressed.” Para Wood, “ao examinar a evolução de um gênero estudamos a evolução do inconsciente de uma civilização; os filmes de horror são nossos pesadelos coletivos.” Portanto, o cinema expressava justamente aquilo que uma determinada comunidade se esforçava em evitar. Nessa espiral de auto-negação, o único rosto apropriado vinha do horror.
Pajeú, de Pedro Diogenes, começa como um filme de horror sobre seu próprio pesadelo coletivo local: Maristela (Fátima Muniz), uma professora que vive e trabalha em Fortaleza, Ceará, é acometida na caminhada para o trabalho pela visão de uma entidade monstruosa no riacho Pajeú. Enquanto Wood via o cinema de horror como expressão ideal do fracasso (sexual, social, político) da sociedade americana, e a manifestação do desejo de começar do zero, em Pajeú a repressão encontra familiaridade etimológica com o passado “represado”: local que teve um papel central na origem de Fortaleza – cidade construída às suas margens – o riacho fora canalizado, despachado por túneis subterrâneos, tornando-se metáfora viva para o recalcamento do pesadelo colonial de Fortaleza.
Em Pajeú, o recalcado ganha expressão tanto indexical – o próprio rio – quanto mitológica – o monstro. No entanto, a própria indexicalidade do rio é palimpséstica. Outrora traço central na paisagem da cidade, o Pajeú hoje retoma protagonismo apenas quando transborda nas temporadas de chuvas, reivindicando um curso alterado pela história, esparramando o mau cheiro que gerações se esforçaram em manter nas entranhas da urbanização. Sua face mitológica não é menos expressiva. Trajando um vestido que se mistura ao esgoto que flutua na superfície do riacho, a criatura não-identificada aparece que aparece para Fátima veste uma longa peruca loura – acessório que remonta tanto à presença Holandesa na colonização daquelas águas (Fortaleza fora construída ao redor do Forte de Schoonenborch, erigido pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais à margem do Pajeú no século XVII), quanto à Cuca, feiticeira mitológica criada pelo famoso autor de histórias infantis e eugenista Monteiro Lobato, em 1921.
Essa dupla literalização do recalcado não destoa da ênfase recente do cinema de horror contemporâneo ao que costuma ser relegado a subtexto intelectual no horror moderno – qualidade tão recorrente que suscitou diversas tentativas de terminologia própria: horror art house; pós-horror; elevated horror; etc. Uma inversão tão radical no equilíbrio interno do gênero quanto essa termina por contradizer os predicamentos que Wood via como necessários para a invocação do recalcado. Para que o horror funcione, “o recalcado não pode ser imediatamente reconhecível enquanto tal… daí a necessidade de disfarce; daí também sua tendência em surgir em contextos que não levamos a sério, que desprezamos, que nos fazem rir, onde ele consegue escapar de nosso julgamento”. Parte da efetividade do gênero está justamente em sua habilidade de passar despercebido como mero entretenimento; assim que o subtexto se torna texto, o horror é portanto substituído por uma performatividade do horror – uma construção discursiva auto-consciente que está mais investida no legado crítico e intelectual do gênero do que na reação visceral que desamarra o recalcado. O subtexto é quem age; o texto apenas fala sobre a ação. Ou, no caso de Pajeú, o subtexto dança o que o texto só pode cantar: uma versão karaokê de “Take on Me”, do A-ha, em português.
À primeira vista, Pajéu se alinha a esse processo de inversão do horror, literalizando o passado colonial na criatura monstruosa do riacho – um monstro que não persegue, não ataca, e não mata. Porém, à medida em que o alegórico se concretiza, e o subtexto se esclarece, Diogenes tira o filme do prumo, e abandona subitamente o horror. Há diversos exemplos históricos de filmes institucionais que terminaram como experiências de horror (Scary Time, comercial feito por Shirley Clarke para UNICEF em 1960 talvez seja o exemplo mais acabado disso); não é fácil, porém, pensar em outros filmes de horror que transformem em documentários institucionais.
Pajeú surge como mito, mas seu objetivo é resgatar a história. O horror inicial desemboca em um documentário sobre a história do rio, contrastando diferentes relatos históricos e mapeando as muitas relações que os moradores da cidade criaram como ele, até que finalmente se transforma uma reportagem arqueológica, na qual a personagem principal conversa com banhistas em uma das muitas praias da cidade, e pergunta o que eles sabem sobre o rio – interação instável que remete a Iracema – Uma Transa Amazônica (1975), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna.
É uma operação tão ausente de radicalidade que torna o filme, paradoxalmente, mais desconcertante. Enquanto longas-metragens notáveis como Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e As Boas Maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, esticavam as convenções do gênero para expressar as permanências do colonialismo, aqui é o gênero, em si, que é colocado sob investigação, como se a catarse do horror fosse ontologicamente negada pela monstruosidade não-documentada que constitui o presente. Em sua estranha irregularidade, Pajeú sugere uma possibilidade não menos assustadora: uma vez que a violência auto-apaziguadora reside logo abaixo da pele, o horror talvez cave fundo demais. Em uma sociedade na qual o subtexto da violência já não teme mais o sol, o recalcado pode voltar não como horror, mas como documentário.
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