Filmmaker Magazine invited me to do an interview with filmmakers Kleber Mendonça Filho and Juliano Dornelles to celebrate the U.S. release of Bacurau. Here’s the interview in the original Portuguese.
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A Filmmaker Magazine me convidou para fazer uma entrevista com os cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles para comemorar o lançamento de Bacurau nos Estados Unidos. Segue abaixo a entrevista em português.
A violência das relações de poder: uma entrevista com Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Bacurau é o nome de um pássaro noturno que existe em diversas partes do Brasil, mas que só tem esse nome no Nordeste. Bacurau, o filme mais recente de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles – que tem lançamento americano este fim de semana – se inspira no pássaro para narrar o cotidiano de um vilarejo no Nordeste brasileiro diante de seu iminente apagamento, alvejado por turistas caçadores estrangeiros em conluio com predadores domésticos. O filme reprocessa convenções do cinema de gênero americano e dos faroestes italianos na paisagem do sertão, cenário de experimentação formal e confronto político no cânone do Cinema Novo. Esta entrevista foi feita por Skype numa manhã de domingo, antes que os blocos de Carnaval tomassem as ruas de Recife, e a música ficasse alta demais para que eu pudesse ouvi-los. Neste intervalo, falamos das jornadas do filme pelo tempo e pelo espaço, e das contradições que surgem neste processo.
Bacurau combina elementos diversos de uma maneira muitas vezes contraintuitiva. Qual foi a primeira imagem ou som que veio no processo de criação do filme que fez vocês pensarem “é este o filme que estamos fazendo”?
KMF: A gente estava no Festival de Brasília em 2009, com meu curta Recife Frio, e eu e Juliano estávamos sempre sentados juntos. E havia momentos em vários dos filmes passando no festival naquele ano, alguns inclusive bons, em que a gente se olhava e dizia “não é possível que esse tipo de coisa ainda aconteça”. Era sempre um filme feito por uma equipe urbana, bem intencionada ou não, que vai pra um lugar super distante pra entrevistar pessoas “simples” – que é um termo ainda muito comum no Brasil, infelizmente. E essas pessoas “simples”, seja por educação ou por treinamento com a própria mídia brasileira, se comportam sempre de maneira muito educada, e terminam sendo usadas ou reprocessadas dentro das especificações do que esses realizadores estavam fazendo. E antes disso tinha tido uma história que foi a gênese do personagem de Damião…
JD: Ontem aqui foi o bloco do Cariri, que é o bloco mais antigo de Olinda, e se é o bloco mais antigo de Olinda talvez seja o bloco mais antigo do mundo. Eu lembro de, por volta de 2007, 2008, estar fazendo umas vinhetas sobre o carnaval de Pernambuco, e eu fui à sede do bloco e o presidente do Cariri estava lá, sem camisa, costurando um estandarte. Quando eu cheguei, eu imediatamente puxei a câmera e comecei a filmá-lo. E ele virou pra mim e falou: “Meu irmão, você tá filmando?”. Eu disse que sim, porque tinha uma luz muito bonita, a imagem tava muito boa. E ele falou: “Meu amigo, então espera pelo menos eu colocar uma camisa.” Eu fiquei com a cara no chão, né? Então a gente já estava lidando com essa questão há algum tempo. Mas você perguntou por uma imagem, e eu me lembro que, em um dos filmes que estava passando em Brasília, tinha um plano de umas senhoras que eram quebradeiras de coco babaçu, no leito de um riacho, lavando roupa com os peitos de fora… isso num documentário. Era um troço muito chocante.
KMF: Uma cena que a gente já pensou em Brasília foi a de um senhor que vai ser entrevistado, tá tudo certo com a luz e o som, e aí fazem a primeira pergunta e o quadro é só ele olhando, em silêncio, de volta pra pessoa. Nenhuma resposta. Porque isso geraria uma tensão muito simples, né? Você faz uma pergunta e você espera uma resposta, mas ela não vem. Essa foi a gênese de Damião, que provavelmente veio desse senhor que Juliano conheceu no Carnaval. Então é curioso, porque o filme nasce de um jeito, e depois vira uma outra coisa. Mas o sentimento continua sendo o mesmo de Novembro de 2009, que é o de negar a imagem normalmente difundida de um tipo de região e de gente. Talvez seja o aspecto até agora menos discutido em Bacurau, e ao mesmo tempo o que teve mais impacto nas pessoas, particularmente no Brasil, porque a imagem do nordestino no Brasil é muito difundida de uma forma, e a gente apresenta outra, que, ironicamente, é a forma real. A ideia de subserviência é muito ausente desse lugar onde a gente filmou.
Quando eu comecei a me interessar por crítica de cinema, existia um termo, aplicado especialmente a filmes brasileiros, que era mortal. Esse termo era “sociológico”. Bacurau traz o corpo social para o centro da questão, e acho que isso tem acontecido com alguns outros filmes brasileiros recentes, de outras formas. De onde parte esse interesse?
JD: Desde o início a gente estava pensando num grupo de pessoas, as tais “pessoas simples”. E esse desejo de falar de um coletivo foi ficando mais forte na medida em que a gente observava o que estava acontecendo ao nosso redor, e trazia coisas novas ao roteiro. Porque a gente via, no nosso ciclo de convívio, uma predisposição e um interesse em lidar com o outro, mas fora dele a gente percebia que estava acontecendo um grande movimento contrário.
KMF: Eu realmente acho que existe uma dieta na cultura que é estabelecida pelo mercado e pela sociedade. E a dieta no Brasil é muito clara, principalmente pra quem é do Nordeste e do Recife. Então eu cresci ouvindo coisas que eu nunca concordava, porque havia sempre um esforço de colocar a gente num outro lugar. A gente era “vocês”. E eu não achava que a gente era “vocês”. A gente era “a gente”, todo mundo junto. Então esse lado sociológico me parece que fica mais forte quando você fala de uma comunidade que vive situações que lidam com o poder. A partir do momento que você mostra um prefeito entrando com um trio elétrico numa pequena cidade, o filme se torna automaticamente político, mas na verdade ele está mostrando algo que acontece há séculos e que tem a ver com o poder.
E essas relações de poder também são violentas.
KMF: Muita gente considera o filme hiper-violento, porque a violência que acontece como reação no filme foge do modelo de ação-e-reação que o mercado estabelece nessa dieta. E como o filme sai desse modelo, as pessoas o percebem como muito mais violento do que nós achávamos que ele seria.
JD: Eu continuo achando isso, porque a quantidade de violência que tem nesse filme é menor de violência do que o que as pessoas estão acostumadas a ver toda semana entrando em cartaz. Agora, voltando à sociologia, eu acho que esse não era um direcionamento deliberado. Ele sempre partiu dessa nossa discordância a partir de uma representação dominante de um determinado grupo social, do Nordeste brasileiro. E aí a gente vai observando e colocando nossas experiências que estão ligadas a isso. O Kleber uma vez foi entrevistar um big shot de cinema na Mostra de São Paulo e, quando a assessora de imprensa soube que era um repórter do Recife ela falou que ia chamar um tradutor. Kleber falou que não precisava de um tradutor, e ela respondeu: “que legal, que bacana, o pessoal do Pernambuco falando inglês!”
KMF: That was nice. (risos) Essa história é uma de cem, né? Mas eu não vejo o filme como vingança em relação a isso, vejo ele como uma observação a respeito do funcionamento da sociedade. São coisas que continuam se repetindo. Isso tinha dado uma sumida por uns dez anos, mas acho que volta com a reeleição de Dilma, quando o Nordeste teve uma participação importante, e eu comecei a ouvir coisas que eu não estava ouvindo há algum tempo.
Existe uma outra dobra no filme, porque há a relação com as personagens sudestinas, e há também as personagens estrangeiras…
KMF: Na sessão do filme no Alice Trully Hall, no New York Film Festival, teve um senhor branco, americano, que se levantou e perguntou: “why are the Americans the heavies?”. E eu falei “why not?”, e as pessoas caíram na gargalhada. Nós não somos anti-americanos, nós amamos o cinema americano e acho que isso fica claro no filme, mas tínhamos esse interesse em inverter o paradigma do cinema industrial. Porque esse confronto é com 124 anos de cinema, né? E aí tem o exemplo do Duro de Matar (Die Hard, John McTiernan, 1988), que eu acho que é o grande filme comercial americano, em que os heavies são os piores alemães da história do cinema, mesmo considerando tantos filmes de segunda guerra, e o nome do líder do grupo é Hans Gruber. Então a questão da representação do estrangeiro é muito fácil na indústria de cinema americana, mas quando isso é invertido se torna um desconforto. E eu adoro isso. E há uma ironia aí, porque a gente não tá invertendo com absurdo, mas sim com realismo. É um filme de gênero, então pode ter algum grau de absurdo, ok, mas os diálogos são realistas, eu já ouvi esses diálogos e já participei deles. Todo mundo já foi perguntado “how do you say that in Brazilian?”. Então são coisas que você vai colecionando, e aí você coloca num filme.
JD: E é importante não esquecer do momento em que Michael (Udo Kier) diz a Terry (Jonny Mars) que vive nos EUA há mais de quarenta anos, e por isso ele é mais americano que qualquer americano que tenha trinta e sete. Isso é muito realista pra quem vive o cotidiano americano.
KMF: Os EUA são o único país que eu conheço em que um estrangeiro que mora nos EUA diz, com muita naturalidade, que é americano. Isso eu não vejo em nenhum outro país. Isso já tá em Amor, Sublime Amor (West Side Story, Robert Wise e Jerome Robbins, 1961), tá na abertura de O Poderoso Chefão (The Godfather, Francis Ford Coppola, 1972).
JD: “I believe in America!” A identidade está ligada a essa mitologia da América como lugar da liberdade.
Tem a identidade com hífen, né? Você pode ser algo-americano. Então é um jogo duplo, porque você está dentro, mas também é marcado como de fora.
KMF: É um jogo de poder que vem principalmente do WASP (White Anglo-Saxon Protestant). Eles se colocam como mais americanos que os native-americans, que os jewish-americans, que os african-americans. E isso não está escrito na constituição, claro, mas é uma dinâmica que a gente compreende observando os EUA, e indo aos EUA. Isso é fascinante e isso tá no filme.
Identidade é algo muito forte no filme. Os dois motociclistas de São Paulo chegam naquela comunidade e já se estabelece um pequeno conflito de identidades. E aí quando chega o confronto verbal entre eles, surgem outras camadas. Quando eles se encontram com o estrangeiro, muda, porque eles estão numa posição de poder inferiorizada. E aí tem a cena em que uma senhora sertaneja acha que eles são americanos, então ela oferece um copo d’água fazendo mímica. E na reunião com os estrangeiros, as diferenças de mercado ficam mais acentuadas, porque eles estão tentando ajudar uma produção, tentam negar a identidade deles, e essa negação não é aceita pelos americanos. Então existe uma discrepância entre o mercado, que é o senso comum, e a realidade, que é como as coisas realmente acontecem.
E essa discrepância entre o mercado e o senso comum é uma das coisas que mais me fascina hoje. E no mercado entra, também, o pacote da política. Hoje, o Brasil e os EUA estão imersos num senso de absurdo que é muito assustador. Você pode estar segurando uma caneca nas mãos, e alguém pode chegar e dizer “isto não é uma caneca, é uma caneta.” E você pode mostrar a caneca e beber café na frente dela, que ela não acredita. A gente discutiu muito isso durante todo o processo do filme, essa discrepância absurda entre o que algo é, e o que as pessoas dizem que aquilo é. Acho que o impacto do filme veio disso.
O filme foi um projeto de dez anos que vocês tinham juntos, e é claro que ele foi se transformando ao longo desse tempo, mas ele também suga e é sugado pelo momento político do nascimento do filme. Como se cria, dentro de um filme, os espaços para que ele possa se encaixar dessa maneira com um momento ainda porvir?
JD: Eu ainda não entendo, mas eu tenho palpites. Eu revi agora Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho, 1984) como parte do processo de programação da mostra Mapping Bacurau, que vai acontecer no Film at Lincoln Center. E eu não lembrava da quantidade de matérias jornalísticas fakes que têm no filme, denegrindo a comunidade das Ligas Camponesas, chamando os caras de comunistas. São fake news iguaizinhas as de agora, que circulam por Whatsapp. Então isso só reforça que as coisas se repetem, só que com formatos diferentes. Eu tenho 39 anos e eu achava que fake news era uma novidade da humanidade, mas não é, tá lá nesse filme, já sendo usada nos anos 1960.
E obviamente têm algumas coisas inexplicáveis também, como por exemplo o apagamento de Bacurau do mapa, que é um comentário sobre tecnologia e poder. A gente estava na França mixando o som do filme, Bolsonaro já era presidente, e escutamos a notícia de que as áreas de preservação ambiental que eram controladas por comunidades indígenas estavam sendo apagadas do mapa. Elas estavam sendo desmatadas, e eles preferiram tirá-las do mapa, pra quem não entrassem nas estatísticas. Não dá pra explicar, porque pra mim isso era novo no filme. E aí o mundo faz igual, sem o mundo ter visto o filme.
KMF: Os filmes que eu tenho feito vêm de uma observação de duas coisas: o que a gente vive agora, e a história. A história é uma série de repetição de ciclos, e acho que isso está nos filmes que eu fiz até agora. E Bacurau, até por ser um filme futurista, muita gente se apega a esse aspecto e acaba não olhando para uma história de décadas, de séculos até, que informa o filme. Mas eu e Juliano escrevemos o filme totalmente conectados. A gente estava sempre ligado em redes sociais e internet, e a gente se alimentava desse clima. E o clima estava mudando. E isso foi entrando no filme ao longo de dez anos. Mas de fato os últimos quatro anos de preparação foram decisivos e realmente alteraram o filme.
Eu lembro muito do David Lean, um grande cineasta, mas que lançou em 1970 A Filha de Ryan (Ryan’s Daughter). Eu acho um belo filme, mas ele foi lançado num momento terrível, porque era como se Lean não estivesse ligado no que estava acontecendo, e estivesse isolado numa bolha romântica. Você não sente nenhuma vibe de Vietnã, do civil rights movement… tudo que era importante, violento e sangrento que estava acontecendo naquele momento não está naquele filme. E ele foi absolutamente destruído, tanto que passou quatorze anos sem filmar. Eu não acho que a gente deva desmerecer ninguém que prefira fazer um filme completamente fora do que está acontecendo, mas pra mim isso conta, e eu e Juliano estávamos muito conectados durante Bacurau, escrevendo cenas como reações ao que estava acontecendo. E é engraçado falar de A Filha de Ryan porque, no mesmo ano, 1970, Companeros, do Sergio Corbucci, que a gente viu num momento em que a gente estava stuck, é um spaghetti western, mas ele está extremamente ligado ao que estava acontecendo em Cuba e no Vietnã. Tá tudo pegando fogo no filme, e ele é extremamente político, de uma maneira muito orgânica… acho que até Che Guevara deve estar no filme…
JD: Claro que está! O Tomas Milian, que faz El Vasco, usa uma boina no filme.
KFM: Então, os filmes que têm me atraído muito têm essa conexão. Uncut Gems, dos irmãos Safdie, por exemplo, é um filme que acho muito importante neste momento. Ele poderia ser um filme dos anos 1970, porque a ganância já existia dos anos 1970, mas hoje, existir um filme americano daquele tipo e com aquele tom, eu fico comovido.
Vocês estão falando do processo da escrita, e quando eu vi o filme pela segunda vez eu fiquei pensando que a estrutura é muito guiada pelo som, criando ritmos sonoros já no processo de dramaturgia. Em que momento isso começa a ser pensado, e como o som determina as escolhas de mise-en-scène?
KMF: O som entra de maneira decisiva nas três etapas – escrita, produção e pós-produção. Muita coisa já é pensada no roteiro. A cena do enterro de Carmelita (Lia de Itamaracá), por exemplo, já tinha escrito algo como “eles tiram lenços e o som parece o barulho de asas de pombos em revoada.” Mas durante a filmagem você também ouve coisas, e aí a gente chegava pro Nicolas Hallet, técnico de som, e falava: “isto aqui é muito importante, ouve este som.” Às vezes é o rangido de uma porteira, por exemplo. Ou uma cena como a dos cavalos. Ali, eu tinha um orgulho muito específico de não usar banco de som. Eu queria usar o ruído de locação, porque ele vem com o som da noite da locação, que era maravilhoso. Então a gente usou onze microfones, pra captar desde as baixas frequências às mais altas.
JD: Eu lembro que o Nicolas levou um Nagra pro set, e nós usamos pra algumas sequências específicas, pra adicionar uma textura analógica. O som de tiro, por exemplo, foi gravado com o Nagra.
E as escolhas de canções?
KMF: Foi um processo parecido. A gente já tinha no roteiro “Night”, do John Carpenter, e “Bichos da Noite”, do Sérgio Ricardo.
JD: “Night” era na cena de abertura do filme, e vinha junto com um crédito em scroll que daria as cartas do filme. Uma coisa meio Guerra nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977).
KMF: Meio Fuga de Nova York (Escape from New York, John Carpenter, 1981) também.
JD: E O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chainsaw Massacre, Tobe Hooper, 1974). Na verdade, essa era a referência principal. A gente chegou a cogitar chamar o Cid Moreira pra fazer a narração (risos).
KMF: Mas a questão é que nos interessa a justaposição de elementos de culturas diferentes. Quando escrevemos “Night” pra abrir o filme junto com uma sequência em CGI, acabou que ficava muito parecido com um filme industrial americano. Não é interessante. Mas quando você coloca Gal Costa e Caetano junto com o CGI caro de filme industrial, aí você tem algo forte. E o mesmo acontece na cena de capoeira. Quando você baixa o som da capoeira, fica só o som dos corpos no chão, e entra a música do John Carpenter, aí sim. Porque eu não veria motivo pra ter uma cena de capoeira em nenhum filme meu. Mas “Night” com capoeira, aí é foda, porque é como se fosse a máquina industrial passando feito rolo compressor sobre a capoeira.
JD: É um resumo de todo o filme, porque é a colisão entre essas duas culturas. E se a gente leva isso pro extremo, é a cena do tradutor no celular, em que a americana baleada tenta se comunicar usando o tradutor.
Eu sei que vocês dois têm projetos novos em andamento. O que podemos esperar depois de Bacurau?
JD: O meu filme é um projeto difícil, pois foi um filme de gênero feito com recursos muito limitados, filmado em 2015, e hoje ele é como uma namorada que foi fazer um doutorado fora do país, e aí agora a gente vai se reencontrar pra saber se ainda estamos apaixonados um pelo outro. Então é possível que ainda leve um tempo pra terminá-lo, porque falta ainda destravar uma parte dos recursos do Fundo Setorial, mas ele vai levar o tempo que precisar levar pra ficar pronto.
KMF: Eu, Juliano e equipe passamos um ano paradoxalmente muito bonito com Bacurau, por mais que a situação do Brasil esteja muito ruim pra quem é trabalhador no Brasil – e a gente é trabalhador da cultura. E eu entendi que, neste momento, eu não poderia ter nenhum tempo ocioso, e que trabalhar me faria bem. Então eu tenho feito um filme de arqueologia do Centro do Recife a partir das salas de cinema de rua que foram extintas, e da última que sobreviveu, que é o Cinema São Luiz, que é uma unanimidade absoluta nesta cidade.
Como acontece com todos os meus filmes, eu não sei bem pra quem ele é, mas ele fala sobre como as cidades mudam, às vezes naturalmente, às vezes a partir de desejos de grupos específicos de pessoas. Mas é um filme sobre o século XX, sobre a cultura do século XX, sobre como a passagem de pessoas pelo mundo às vezes fica impressa em paredes. Eu já venho realizando esse filme há uns quatro anos, um pouco como eu fazia filmes em VHS nos anos 1990, mas agora com a Alexa, e às vezes eu chamo o Pedro Sotero (fotógrafo) e mais alguns amigos pra filmar uma manhã no centro da cidade. E ele usa muito material de arquivo que jamais foi visto. Como o Brasil é um país ruim de arquivo, há um valor muito especial em ter esse material, principalmente pra quem é do Recife. Eu cresci não vendo material de arquivo do Recife, e de repente neste filme eu começo a descobrir coisas muito orgânicas sobre a maneira como a gente se relaciona com a cidade.
Hoje a gente vive um momento paradoxal do cinema brasileiro, porque temos sua melhor safra em talvez 40 ou 50 anos, e ao mesmo tempo há esse terror institucional que ameaça diariamente a continuidade desse cinema. Como vocês vêem esse momento?
JD: Eu acho difícil ainda imaginar o que vai acontecer. A gente teve essa safra de 2019 que, como você disse, me parece também a melhor dos últimos 50 anos, e que, nunca antes na história deste país, foi feita de maneira tão democrática e descentralizada. O país sempre teve os recursos apontados pra região dos forasteiros de Bacurau, e agora a gente tem toda uma cena de cinema em Fortaleza, na Bahia, e em todos os lugares do Brasil. Eu não sei o que vai acontecer, mas eu sei que quando há uma praga de gafanhotos numa plantação, é no ano seguinte que a gente vive a falta dos grãos. A expectativa é que a gente fique sem filmes durante um tempo. Mas ao mesmo tempo eu vejo também uma outra coisa interessante acontecendo, que é o envolvimento de fundos internacionais que já não estavam mais muito preocupados com o cinema brasileiro, porque se havia criado condições de auto-suficiência da produção. E agora eles estão voltando a direcionar seu olhar pra cá, já sabendo do que está acontecendo. O que está acontecendo com o cinema brasileiro não se explica nem economicamente, porque é uma indústria que hoje movimenta mais dinheiro do que a indústria farmacêutica, por exemplo – e acho que a coisa que mais tem hoje no Recife é farmácia. Então nem de um ponto de vista neoliberal faz sentido destruir uma indústria como essa.
KMF: Tem uma expressão que perdeu o sentido no Brasil, e é fantástico que isso tenha acontecido, que é a idéia de “fora do eixo”. A gente aposentou essa expressão, porque ela fazia parte de uma luta de 15, 18 anos atrás, em que todo mundo que filmava fora do sudeste se identificava com essa posição “fora do eixo”. E o que tenho reparado é que, muito rapidamente, essas decisões estão voltando a ser tomadas no Sudeste. Decisões importantes para o cinema brasileiro não são mais democráticas, porque não passam mais por pessoas de cinema que estão na Bahia, no Tocantins, em Porto Alegre, e voltam a se concentrar em Rio e São Paulo. E é muito importante perceber que o cinema feito fora do sudeste não esteja sendo contemplado sequer pelos novos grandes meios de produção, como Amazon e Netflix, porque as decisões voltaram a ser tomadas só no Rio e em São Paulo.
Todo mundo da nossa geração passou por um período muito longo de guerrilha, fazendo filmes da maneira que a gente conseguia fazer. Pra quem já passou dessa fase, o cenário é mais grave, porque estamos vendo a destruição do cinema brasileiro. E essa destruição de uma parte substancial da economia do Brasil tem sido feita com alegria, com sadismo. Há um prazer em destruir um sistema que foi feito com muito diálogo, com muito critério, e que, dentro da imperfeição inevitável, funcionava muito bem, e uma volta a esse modelo antigo que concentra o dinheiro, o modelo e a estética no Sudeste.
Na minha época de guerrilha, eu lutava contra os moinhos de vento, porque eu trabalhava com VHS, e o resultado não tinha exposição que eu acho que merecia porque havia ainda uma hierarquia dos formatos. E hoje, mesmo que você não tenha uma câmera, um celular que grave vídeo, ou um computador pra editar, é muito provável que exista algum disponível perto de você. E eu adoraria ver filmes surgindo desse tesão de fazer. Então, pra quem tá começando e está fazendo o cinema que é possível, nunca houve um momento tão incrível pra isso. A tecnologia está disponível, e a quantidade de conflitos que o país gera a cada dez minutos é incrível. Nesse cenário, os jovens têm o mundo pela frente, porque eles podem fazer o que eles quiserem, até com certo grau de desobediência civil, fazendo filmes livres e que possam fazer parte do que está acontecendo. Eu espero que façam não apenas coquetéis molotov em forma de filme, mas filmes que, de maneira honesta, se voltem à realidade e perguntem: “por que vocês estão fazendo isso?” Hoje mesmo o contato entre um realizador e um festival não precisa mais por embaixada, por órgãos institucionais… você manda um link com o filme, e há pessoas lá do outro lado capazes de perceberem que receberam algo muito interessante do Brasil que deveria ser exibido. Esse é o lado bom do que está acontecendo, e eu prefiro ver esse lado.
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