* Originally published at Cinética on March 2008.
Three hours of life
Watching Fengming is an unrepeatable experience – and this has little to do with how hard it can be to find the film. It is unrepeatable because of its monumentality. First of all, the film is monumental for a structural reason: if Tie Xi Qu: West of the Tracks (2003), Wang Bing’s debut film, invited the viewer to spend 9 hours observing the decay of a Chinese industrial park, Fengming asks them to give themselves to three hours of an almost uninterrupted testimony by the film’s title character. Second, it is monumental for the weight of the words that are said: now an elderly woman, Fengming spent 30 years of her life being persecuted by the Chinese government; in the process, she lost her husband, her mother, and several anonymous people who were in similar situations. The difference of Fengming is that her presence on screen is a symbol of both her survival and the pains of her past life.
If the experience of hearing a person tell 30 years of her life over the course of three hours might seem unbearable for many, in Fengming it seems to be the only possible way. For in constructing virtually an entire film alternating between a wide and a medium shot of that speech (in addition, there’s only one shot of the protagonist walking around, two or three shots of her apartment, and the final long take, which closes the film), Wang Bing makes a political statement of uncompromising strength. The scarcity of cuts during this one-sided interaction with a single character establishes a tension between the different branches of the director-character-viewer tripod which traditionally keeps documentary on its feet.
The first long shot of this speech (for it is not a conversation) in the film produces a dramatic situation that is in itself extraordinary: the natural light that illuminated Fengming, coming in through the window, slowly goes down. By the time we realize it, one can barely see more than the reflection on the woman’s glasses, herself immersed into darkness. When it gets too dark to keep going, Wang Bing briefly interrupts the testimony and asks the character if they can turn on the lights. This first very long shot promotes a profound self-questioning of the status of documentary, for once several possible cutting points have passed, the relation the spectator establishes with the character becomes more and more dense, more reliant on duration.
From then on, each cut gains the weight of the world, because they always bring the feeling that they’re interrupting a relationship that only time can build. The desire to get rid of the cut is not to diminish the intervention of the documentarian, but rather because of the perception that each new second establishes a new relationship, and each second cut stands for a relationship that didn’t get to be born. In the case of Fengming, this encounter holds a political dimension, for the film grants the right to speak to someone whose life had been transformed by the impossibility of doing so. More than the duty to reaffirm the details of the historical process, the film is an exercise on the freedom of speech, but also on the freedom of listening.
For the film is haunted by a reverse shot that never comes, but that is present in the choices that lend form to the work: Wang Bing himself. And the form chosen by the director is revelatory because it underscores the remarkable narrative ability of the film’s character. One gets to learn not only from the events she is telling but also from the rhythm that they come out of her mouth, with almost no pauses (even if the cuts between the two cameras had been used to omit the moments of silence), in a flux of thought of devastating linearity. It is an ability that transcends language precisely because it is so wholesome, because it slashes through the decades without a glass of water, a longer pause, a hesitation. It is a beauty that comes not really in the speech itself, but in the way the words inhabit the body, for the story is so deeply ingrained in the memory of those who lived it that it takes no more than a camera in front of the couch for it to pour out, whole, in one day and one night.
Watching Fengming is an unrepeatable experience because it is designed to be that way. The transparency in Wang Bing’s grammar relies on the impossibility of a reencounter because the internal self-questioning that’s triggered by the film during the projection produce tears that cannot be sewn back together.
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Três horas de vida
Ver Fengming é uma experiência irrepetível – e isso pouco tem a ver com a dificuldade de acesso ao filme. É irrepetível pela grandiosidade de seu próprio projeto. Em primeiro lugar, por uma questão estrutural: se Além dos Trilhos, filme de estréia de Wang Bing, convida o espectador a passar 9 horas observando a decadência de um parque industrial chinês, Fengming pede que ele se dê às três horas de um quase ininterrupto depoimento de sua personagem-título. Em segundo, pelo próprio peso das palavras ditas: Fengming, hoje uma senhora, passara 30 anos de sua vida sendo perseguida pelo governo chinês; no processo, morrem seu marido, sua mãe e vários anônimos que vivem situações parecidas. A diferença de Fengming é que sua presença em tela é símbolo tanto de sua sobrevivência, quanto das dores de sua vida passada.
Se a experiência de ouvir uma pessoa contar 30 anos de sua vida em três horas é, para muitos, insuportável, em Fengming ela parece ser o único caminho possível. Pois ao construir um filme praticamente inteiro alternando entre um plano aberto e um plano médio dessa fala (além disso, temos apenas um plano de caminhada com a protagonista, dois ou três recortes de seu apartamento, e o derradeiro plano-seqüência que fecha o filme), Wang Bing faz, em seu segundo longa-metragem, uma afirmação política de contundência ímpar. A escassez de cortes em um depoimento de uma só personagem coloca em crise as múltiplas relações do tripé realizador-personagem-espectador que sustenta um documentário.
O primeiro longo plano de fala (pois não é, aparentemente, uma conversa) do filme gera uma situação, em si, extraordinária: sem que o espectador perceba, a luz que, pela janela, iluminava Fengming vai se esvaindo. Quando nos damos conta, a dona da voz que ouvimos é apenas o reflexo dos óculos que imergem na escuridão. Quando a impossibilidade da visão é quase total, Wang Bing interrompe o depoimento e pede que sua personagem acenda as luzes. Esse primeiro longuíssimo plano é um profundo auto-questionamento da realização documental, pois uma vez passados vários pontos de corte possíveis, a relação do espectador com a personagem fica cada vez mais densa, mais dependente dessa duração.
Cada corte, a partir dali, ganha o peso do mundo, pois traz sempre a sensação de interromper uma relação outra que só o tempo seria capaz de construir. O desejo de abolir o corte não vem como questionamento dos direitos de intervenção do documentarista, mas sim da percepção que cada novo segundo estabelece uma nova relação, e cada segundo cortado é uma relação que deixa de nascer. No caso de Fengming, esse contato ainda ganha uma dimensão política mais acentuada, pois o filme permite que uma pessoa que teve sua vida transformada pela impossibilidade de se expressar possa, enfim, falar. Mais do que uma história que precisa ser reafirmada, Fengming trata sobre a liberdade da fala e, conseqüentemente, a liberdade da escuta.
Pois existe, no filme, um contracampo que nunca vem, mas que se coloca justamente nas escolhas que moldam a obra: o próprio Wang Bing (foto ao lado). E a maneira escolhida por Bing para construir seu filme é reveladora, pois sublinha a incrível capacidade narrativa de sua personagem. Mais impressionante do que a história de vida de Fengming é a maneira como os acontecimentos saem de sua boca, quase sem pausa alguma (mesmo que os poucos cortes entre os dois ângulos de câmera escondam os silêncios), em um fluxo de pensamento de uma linearidade devastadora. É uma habilidade que sobrevive à barreira da língua justamente por ser tão inteira, por passar pelas décadas sem um copo d’água, um respiro mais profundo ou uma hesitação. É um encanto que não está tanto em sua fala, mas em sua maneira de falar, pois história está tão fortemente marcada na memória de quem a viveu, que uma câmera em frente ao sofá é suficiente para fazê-la sair, inteira, entre um dia e uma noite.
Ver Fengming é uma experiência irrepetível, porque é construída para ser assim. A transparência da linguagem de Wang Bing conta com essa impossibilidade de reencontro, pois os questionamentos internos que se dão na projeção são como rasgos irremendáveis.
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