A one and a one
The short films directed by Gabriel Martins show a multi-faceted pattern of confrontation and negotiation between the director’s gaze and the conventions of different genres and modes of practice: the essay film (the wonderful Amazing World Remix, 2014), the multiplot gangster film (The Inside, 2010, co-directed with Maurilio Martins), the militant film (Rhapsody for the Black Men, 2015), the newsreel (Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides, 2011), the sitcom (Saturday Movie, 2009), and the experimental documentary film (At the End of the World, 2009). In Nothing, which premiered last year at the Directors’ Fortnight and had its New York Premiere at Lincoln Center as part of My First Film Festival, the director tackles another category: it is, at least on the surface, a typical art house film.
The dedication to genre or pre-coded practices is itself noteworthy in a country in which the very idea of genre cinema has been constantly challenged by official-esque historiography. While the past few years have witnessed a purposeful incorporation of genre as a non-exceptional practice – of which Good Manners (Juliana Rojas & Marco Dutra, 2017), which played at New Directors/New Films and had a theatrical release in the Summer, stands as the latest pinnacle – Martins stands as an eclectic exception to approach it in an analytic and systematic way in a context in which even a monumentally influential filmmaker such as José Mojica Marins is still seen either as an occasional genius or a laughable scam. While genre production in Brazil has been haunted by both elitist disavowal and the “original sin” of Brazilian cinema that critic Paulo Emílio Salles Gomes defined as “our creative incapacity of copying.” [1] Martins turns that very incapacity into a method of refusal: it is the very act of trying to fit the filmmaker’s gaze within the restrictions of each genre which generates its brightest creative sparks.
Nothing is especially didactic in this regard. Bia (played by the rapper Clara Lima) is confronted with a question in school: what do you want to do after you finish high school? Her answer is strong enough to lend the film its title: nothing. The young rapper, therefore, more than fits David Bordwell’s description of the protagonist of the art film as a drifting character who lacks a clear goal; in fact, she enacts it: she desires nothing but the open-ended journey, the suspenseful ambiguity of the art film, the journey that is more important than its destination. [2] For Bia is not quite a Bartleby – the character created by Herman Melville which creates an ethos and a practice of systematic refusal – but an artist, an author – as Bordwell says, the “overriding intelligence organizing the film for our comprehension” which is foregrounded in the art film. For us as well as for herself, Bia is unavoidable.
Through its protagonist, the film doubly enacts the tension between singularity (the author as the organizational force) and structural conventionality (the art film as a clear system adopted as a mode of film practice) which is at the core, rather than the foreground, in Martins’ previous work. Both in its plot and in its authorial statement, Nothing is the result of an artist at odds with the structures that try to pin them down and define them. “In the art cinema, social forces become significant insofar as they impinge upon the psychologically sensitive individual;” for Bia, these forces are the school, the family, the demands of capitalism, but also the structures of gender and race; for Gabriel Martins, they are the very expectations tied to the art film – the ambiguous, open-ended narratives based on psychological, rather than narrative, causation, centered around a drifting protagonist who lacks clear goals, organized as a statement by the author.
Of the many interesting features of the film (as Martins’ previous films had already made clear, his camera movements have the ability to evoke different weights in a way that few filmmakers today are capable of), there’s one recurring pattern which is especially important to create this persistent feeling of an inescapability of the self: the editing (by Thiago Ricarte) frequently cuts from Bia’s face at the end of a scene back to her face, at the beginning of another. The setting changes, the colors change, the context changes, yet Bia – her face, her eyes, her deadpan stare into the future – remains as the only entrance and exit, creating a formal loop that foresees nothing but the present. At the heart of the tension between the individual and the structures that determine them, Bia cannot avoid herself, the same way that Martins, as an author, cannot avoid himself. Nothing unfolds like an ever-stretching showdown between a one and a one.
[1] Paulo Emílio Salles Gomes, “Cinema: a Trajectory within Underdevelopment,” in Robert Stam, Randall Johnson, Brazilian Cinema (East Brunswick; London; Toronto: Associated University Presses, 1982) 245.
[2] David Bordwell, “The Art Cinema as a Mode of Film Practice,” in Film Criticism, vol. 4, n. 1, Fall 1979, http://www.jstor.org/stable/44018650
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Um contra um mesmo
A obra em curta-metragem de Gabriel Martins forma uma colagem sinuosa de confrontos e negociações entre o olhar do diretor e as convenções de diferentes gêneros e abordagens: o filme-ensaio (no espetacular Mundo Incrível Remix, 2014), o filme de gangster multplot (Contagem, 2010, co-dirigido por Maurilio Martins), o filme militante (Rapsódia para o Homem Negro, 2015), a telereportagem (Dona Sônia Pediu uma Aarma para seu Vizinho Alcides, 2011), o sitcom (Filme de Sábado, 2009), e o documentário experimental (No Final do Mundo, 2009). Em Nada, lançado no ano passado na Quinzena dos Realizadores, no Festival de Cannes, o diretor se confronta com outra categoria: trata-se, ao menos superficialmente, de um filme “art house”.
A dedicação aos gêneros e às práticas codificadas salta aos olhos em uma filmografia cuja historiografia oficialesca nega a presença mesma do gênero com aspecto fundante. Muito embora os últimos anos tenham testemunhado uma incorporação do gênero como prática não-excepcional – tendo em As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017) um mais recente paradigma – Gabriel Martins se destaca como eclética exceção por sua abordagem analítica e sistemática dos gêneros em um contexto em que mesmo um cineasta de influência monumental como José Mojica Marins segue popularmente desqualificado, seja como gênio ocasional ou picaretagem risível. A produção de gênero no Brasil é tradicionalmente assombrada pela desautorização elitista, mas também pelo “pecado original” do cinema brasileiro que Paulo Emílio Salles Gomes definiu como “nossa incompetência criativa de copiar.” [1] Martins transforma exatamente essa incapacidade em um metódo de negação: é justamente o ato de tentar encaixotar o olhar do cineasta dentro das restrições de cada gênero que produz as mais resplandescentes fagulhas criativas.
Nada é especialmente didático nesse aspecto. Bia (interpretada pela MC Clara Lima) é confrontada com uma pergunta na escola: o que você pretende fazer depois que acabar o ensino médio? A resposta é forte o suficiente para dar título ao filme: nada. A jovem MC se enquadra com perfeição na definição de David Bordwell do protagonista do filme de arte como um personagem à deriva e sem um objetivo claro; na verdade, ela encena justamente isso: ela deseja a jornada com final aberto, a ambiguidade em suspensão do filme “art house,” a jornada que se sobrepõe ao destino. [2] Pois Bia não é exatamente Bartleby – personagem de Herman Melville que desenvolve uma ética e uma prática ao se negar a fazer tudo que lhe é solicitado – mas sim uma artista, uma autora – como diz Bordwell, “a inteligência estruturante que organiza o filme para a nossa compreensão” e que é trazida para o primeiro plano no filme “art house”. Para ela e para nós, Bia é inevitável.
Por meio de sua protagonista, o filme encena em duas camadas a tensão entre singularidade (o autor como força organizacional) e a convencionalidade estruturante (o filme “art house” como um sistema claro, adotado como prática de criação) que permanecia ao fundo nos filmes anteriores de Martins. Na trama mas também no comentário do autor, Nada é o produto de um(a) artista às voltas com as estruturas que tentam determiná-lo(a) e defini-lo(a). “No cinema de arte, forças sociais se tornam significativas somente na medida em que elas agem sobre o indivíduo psicologicamente sensível;” para Bia, tais forças são a escola, a família, as demandas do capital, mas também as estruturas de gênero e raça; para Gabriel Martins, elas são as expectativas do formato “art house” – as narrativas ambíguas de final aberto baseadas em uma causalidade psicológica e centradas em um(a) protagonista à deriva sem objetivos claros, organizados como comentário ou declaração pelo autor.
Dos muitos traços distintivos do filme (como o trabalho anterior de Martins já deixava claro, seus movimentos de câmera possuem uma rara habilidade de evocar diferentes pesos em diferentes situações, de forma que uma traveling nunca seja apenas um traveling), há um refrão em particular de importância vital na criação desse sentimento de inescabilidade de si mesmo: a montagem (de Thiago Ricarte) corta repetidamente do rosto de Bia ao final de uma cena para seu rosto no começo da cena seguinte. Mudam o cenário, as cores, o contexto; mas Bia – seu rosto, seus olhos, sua impassibilidade diante do futuro – permanece como porta única de entrada e saída, criando um loop que não permite enxergar um milímetro além do presente. No cerne da tensão entre o indivíduo e as estruturas que o determinam, Bia não pode evitar a si mesma, da mesma maneira que Martins, o autor, não pode se evitar. Nada progride como um duelo infinito de um contra um mesmo.
[1] Paulo Emílio Salles Gomes, “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento” (São Paulo: Paz e Terra, 2001) 9
[2] David Bordwell, “The Art Cinema as a Mode of Film Practice,” in Film Criticism, vol. 4, n. 1, Fall 1979, http://www.jstor.org/stable/44018650
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