* Originally published at Cinética, December 14th, 2017.
Everything happens
The book by the Brazilian researcher and scholar Ivone Margulies on the work of Chantal Akerman holds in its title a synthesis of what’s required of the spectator by a film such as Jeanne Dielman: nothing happens. The title is a witty stab at the condescending tone so easily projected over Akerman’s films – which, in the dryness of their minimalism, might generate the impression of being (sometimes very long) narratives or plastic compositions where nothing happens. But there is also a second meaning in the title: even “nothing” is something that happens. While defining what is “something” and what is “nothing” is a work of ideology at the discretion of each viewer, even this “nothing” takes up time and space, takes place in a specific location (in the case of Jeanne Dielman, a title you can GoogleMap) and operates on someone.
This central perception, which is richly developed in Margulies’ book, is so valuable for it points to the fundamental proposition of Akerman’s most famous work: to promote a profound reevaluation of scales. By dedicating time and attention to Jeanne (Delphine Seyrig) and her routine, which is laid out like a war operation or an ethnography autopsy, the filmmaker displaces the viewer’s attention to another measure of perception. In the musicality of peeling potatoes, washing one’s armpits, or making a bed, Jeanne Dielman is revealed as an action film in which microscopic variations acquire great dramatic weight: everything happens. This feeling would be condensed literally three decades later by the great Louise Bourgeois: “What did you do for twenty years? You have wasted your time. The woman who has lost her life, she has cooked, housecleaned, sewn, washed, done the stairs, the windows, the floors, the fish and the soup.” (Hours of the Day, 2006)
Such a change in scale brings the displacement of the heroism of the ordinary found in James Joyce’s Ulysses (1922) together with the feminist inventory of space in Virginia Woolf’s A Room of One’s Own (1929). If Ulysses is still a cartography of Dublin, with its cafes, parks, and ports, Jeanne Dielman is an exploration of the power of an address, of the dreams and traumas inscribed on the walls, under the pressure of the off-screen space. This unseen carries the weight of the war, of the dead parents and husband, of Jewish identity as a palimpsest, of the expectations and demands of a son’s life to come. In 23, Quai du Commerce, lies the 20th century, for “one has only to go into any room in any street for the whole of that extremely complex force of femininity to fly in one’s face. How should it be otherwise? For women have sat indoors all these millions of years, so that by this time the very walls are permeated by their creative force, which has, indeed, so overcharged the capacity of bricks and mortar that it must needs harness itself to pens and brushes and business and politics,” Woolf wrote.
At the end of the screening, the viewer might be able to describe the smell and draw the floorplan of that apartment (a first surprise comes when Jeanne and her son leave their home for the first time: an elevator! It’s an apartment, not a house!), for the film gives one the privilege to simultaneously inhabit it and scrutinize it. This strange balance comes from the way Akerman’s camera looks at this space, finding detail at a paradoxical distance, with the ambiguity of a detached, scientific inspection, and the blind and deaf collective repression of the dysrhythmic meat grinder that supports the apparent stability of daily life. The price comes in the progressive infiltration of this grind with a true sense of tragedy. “When she bangs the glass on the table and you think the milk might spill, that’s as dramatic as the murder,” Akerman has stated. As these disruptions dictate a different percussion to this muted choreography, the action film blooms into a thriller.
While, at first, the film might seem reiterative, Jeanne Dielman economically applies a logic of modulations through repetition and difference – a scheme that is at the core of both minimalism and of Judaism. The film never revisits the same action in the same way; there’s always some kind of variation in the daily chores which brew a sedimentary revolution. Duration is key, for transformations – this central narrative agent that finds fertile ground in moving images, whether it’s a Pixar film or an Andy Warhol screen test – take place in time, in the dust that coats the door frames. In this scale reduction proposed and stretched by Akerman, the devil lies in the most intimate details.
To reach this level of ambiguity, the director feeds off the contradiction between narrative and rarefaction; compassion and stoicism; Bresson and Minelli; Hitchcock and Michael Snow. If Akerman’s oeuvre is a collection of genres and registers – from documentary to fiction; from structural film to musical comedy – Jeanne Dielman seems to absorb and resignify this life and this love for images and for the music in images, changing cinema to come, but also the cinema that had already happened. Cinema is only one and it finds one of its most beautiful and complete reflections on Jeanne’s ever-stretching loneliness.
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* Publicado originalmente em Cinética, 14 de Dezembro de 2017.
Tudo acontece
O livro escrito pela acadêmica e pesquisadora brasileira Ivone Margulies sobre a obra da cineasta belga Chantal Akerman, recentemente editado no Brasil pela EdUSP, traz em seu título uma síntese do estado de espírito requisitado ao espectador por um filme como Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles: nada acontece. Há, no título do livro, um chiste com o tom jocoso facilmente aplicado aos filmes de Chantal Akerman que, na secura de seu minimalismo, podem gerar a impressão de serem narrativas – muitas vezes longas, como é o caso aqui – ou composições plásticas nas quais nada acontece. Mas há, também, um segundo sentido contido no título do livro: mesmo o nada é algo que acontece. Guardados todos os pressupostos políticos e ideológicos que determinam, para cada espectador, o que é algo e o que é nada, até esse nada toma tempo e espaço, ocorre em lugar específico (no caso de Jeanne Dielman, um título que pode ser buscado com exatidão no Google Maps) e age sobre alguém.
Essa percepção de Margulies, desdobrada de maneira muito rica em seu livro, é tão valiosa por apontar o movimento primordial feito por Chantal Akerman no seu mais célebre filme: promover uma profunda reavaliação das escalas. Ao dedicar tempo e atenção à rotina de Jeanne (Delphine Seyrig), esquadrinhada como uma operação tática de guerra ou como uma autópsia etnográfica, a cineasta condensa a expectativa do espectador a uma outra medida de percepção. Na musicalidade com que ela descasca batatas, lava axilas ou arruma camas, Jeanne Dielman na verdade revela-se um filme de ação ininterrupta, cujas pequeníssimas variações ganham enorme peso dramático: tudo acontece. Esse sentimento seria literalmente condensado três décadas depois pela grande artista Louise Bourgeois: “O que você fez ao longo de vinte anos? Você jogou seu tempo fora. A mulher que perdeu toda a sua vida, ela cozinhou, limpou a casa, costurou, lavou, cuidou da escada, das janelas, do chão, do peixe e da sopa”. (Hours of the Day, 2006).
Tamanha mudança de escala promove um encontro entre o deslocamento do heroísmo para o homem comum do Ulisses (1922), de James Joyce, com a perspectiva de um inventário espacial feminista de Virginia Woolf em Um Teto Todo Seu (1929). Se Ulisses é, ainda, uma cartografia de Dublin, com seus cafés, praças e portos, Jeanne Dielman é uma exploração da potência de um endereço, dos sonhos e traumas que se inscrevem nas paredes, sempre pressionadas pelo fora de campo. Esse fora de campo aqui carrega o peso da guerra, dos pais e marido mortos, da identidade judaica em apagamento, das expectativas e demandas da vida porvir de seu filho. Em 23, Quai du Commerce, está impresso o século XX, pois “basta que entremos em qualquer cômodo de qualquer rua para que essa força extremamente complexa da feminilidade nos salte aos olhos por inteiro. E como poderia ser de outro modo? Pois as mulheres têm permanecido dentro de casa por todos esses milhões de anos, de modo que a essa altura as próprias paredes estão impregnadas por sua força criadora, que, de fato, sobrecarregou de tal maneira a capacidade dos tijolos e da argamassa que deve precisar atrelar-se a caneta e pincéis e negócios e política”, escreveu Woolf.
Ao fim da sessão, o espectador talvez seja capaz de descrever o cheiro e desenhar a planta baixa daquele apartamento (uma primeira surpresa, quando Jeanne e o filho saem de casa: um elevador! É um apartamento, não uma casa!), pois o filme lhe confere o privilégio de, simultaneamente, habitá-lo e observá-lo de fora. Esse estranho equilíbrio se dá porque a câmera de Akerman perscruta esses espaços de maneira ao mesmo tempo detalhada e distante, com a ambiguidade do registro científico e do recalcamento coletivo, cego e surdo à disritmia do moedor de carne que sustenta a aparente estabilidade do cotidiano. A fatura vem na infiltração progressiva desse cotidiano com um verdadeiro sentido de tragédia. “Quando ela bate com o copo de leite na mesa e você pensa que o leite pode derramar, isso é tão dramático quanto um assassinato”, dizia Akerman. À medida em que disrupções ditam uma outra percussão nessa coreografia emudecida, o filme de ação se torna filme de suspense.
À primeira vista talvez reiterativo, Jeanne Dielman na verdade aplica, de maneira extremamente econômica, uma lógica de modulações – tão cara ao minimalismo quanto à cultura tradicional judaica – calcada em repetição e diferença. Não retornamos às mesmas ações da mesma maneira; há sempre uma pequena variação nas tarefas cotidianas, que sedimentam essa revolução imperceptível. A duração faz-se proposição fundamental, pois as transformações – esse grande agente narrativo que encontra na imagem em movimento território privilegiado, seja num filme da Pixar ou nos retratos filmados de Andy Warhol – sempre ocorrem no tempo, acumulando como poeira nos batentes. Na redução de escala proposta e levada às últimas consequências por Akerman, o diabo se instaura nos mais ínfimos detalhes.
Para alcançar esse nível de ambiguidade propositiva, a diretora promove uma combinação surpreendente entre narrativa e rarefação; compaixão e estoicismo; Bresson e Minelli; Hitchcock e Michael Snow. Se a obra de Akerman é um grande compêndio de gêneros e registros do cinema – do documentário à ficção; do cinema estruturalista à comédia musical – Jeanne Dielman parece absorver e ressignificar toda essa vida de paixão pelas imagens e pela música das imagens, mudando o cinema dali por diante, e dali para trás. O cinema é um só e, na solidão esgarçada de Jeanne Dielman, ele encontra um dos mais belos e completos reflexos em sua curta história.
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