* Originally published in October 2015, at Cinética.
Shadowplay
One characteristic that has remained remarkably constant in Philippe Garrel’s work is his predilection for setting his films in a gap, an interval between two people’s very distinct experiences of the same relationship. In movies as different as The Birth of Love (1993), The Inner Scar (1972) and the recent Jealousy (2013), Garrel has channeled a lot of his creative energy through the seemingly endless possibilities of this fundamental disagreement. The reason for such fertility is because the soil of this no (wo)man’s land is the principle of drama: one character wants something from another character, who in turn wants something else. This basic set-up creates just enough structural solidity to completely liberate Garrel’s camera to follow them and watch their reactions to this minuscule seed of conflict. If we care about them enough (and as a matter of fact, I do), this is all we’ll ever need.
The scenes that derive from such basic principle either are affected by this interval or end up prolonging it, further separating the characters in their unifying desire (or their false sense of duty) of being together. If ruled by expectations (another key element of drama), this desire, however, can be the heart of both the enthusiasm of life and the ruination of love: to be together is to subject yourself to what you cannot know or control, and that’s the beauty and the misery of it. The beauty and the misery, indeed: two sides of the same coin Garrel’s films keep investigating and learning/teaching more about, and that still seem to hold so much mystery, so much to be experienced and discovered after the lights in the theater are turned back on.
The usual interval in perception that is more or less evident in most films by the director is brought to the surface in this new movie, starting with the double meaning of its title. If the omniscient narration (not to mention the Greek choir always embodied by the camera and the editing) constantly makes fun of Pierre (Stanislas Merhar) for believing that to be “in the shadow of women” is to be mercilessly under the influence of the volubility of their desires, adhering to a growing tendency of male self-victmization in contemporary life, it is because the same shadow, in fact, is present in a much more general and determining aspect of human interaction: a relationship happens not only between the clear perspectives two (or more) people have of each other, but also between their shadows, the part of their lives and of the way they apprehend that same relationship that will inevitably remain in the dark, vulnerable yet unknowable.
It is no wonder then that In the Shadow of Women begins with the most concrete manifestation of such feeling: infidelity. Pierre falls in love with Elisabeth (Lena Paugam) but keeps the affair a secret to his partner in love and work, Manon (Clotilde Courau). Even though the three of them barely share a moment on screen, the triangular nature of the relationship is constantly reinforced by the omniscient narration in voiceover (by Louis Garrel) and the camera itself, constantly alluding to the third vertex of the relationship that’s been kept off-screen, in the shadow. The separation of the double lives led by the characters is sabotaged by the brilliant editing of the film, avoiding establishing transitions to heighten its abundant use of faux-raccords, recreating continuity in actions that the protagonist struggles to keep separated, retying relationships that he hopes can be sustained unaware of each other. Love is the realm of affects, and those never go only one way.
If the terrific Jealousy already brought to mind a somewhat disconcerting approximation between Philippe Garrel and the cinema of Hong Sang-soo, In the Shadow of Woman’s triangular relations take that improbable connection many steps further, even finding humor in the process – a sentiment one wouldn’t normally associate with France’s most tortured living auteur. The director embraces Hong’s technique of plot as combinatory analysis, minimizing the self-awareness of the device, but still retaining its irony. And if the audience is the third vertex in all these pairs of people, it is just a matter of time until we also realize we don’t know the whole story: Manon has also been having an affair, and that information alone reshapes and reconfigures the relations the movie depends on. “I’m discovering you. How you talk to men”, says Pierre, after he’s found out she’d been cheating on him. “I was always like that”, she replies. “But I didn’t see it”, he says. And neither did we.
Garrel uses this idea of drama as a collection of dark sides, of areas in the shadow, to further complicate precepts of visibility and the off-screen space in cinema – and, with that, the role of modern cinema audiences. The adherence to the omniscient narration stands in contrast with the partiality of vision, mirroring the relations between the characters in the film’s own relationship with the spectator. The realization of the lack of truth in the documentary footage Pierre and Manon had been working on is the cynical lesson the characters have to learn (and do they?) as much as it is a disclaimer to the audience. Yes, In the Shadow of Women is a farce, and while such word is not one that easily fits Garrel’s cinema, the imaginary sight of the director wearing shoes that look like they could be his own, but actually belong to someone else entirely different, ends up being the most appropriate image one can leave the theater with. And while Jealousy’s happy end seemed to be the biggest of all tragedies in Garrel’s cinema, the cynicism that shows up in the shadow of this new film ironically allows us to, for once, be happy for him.
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* Publicado originalmente em Janeiro 2016, em Cinética.
Jogo de sombras
Uma característica que tem se mantido razoavelmente constante no cinema de Philippe Garrel é sua predileção por instalar o filme em um gap, um intervalo entre as experiências distintas de duas pessoas em um mesmo relacionamento. Em filmes tãp diferentes quanto O Nascimento do Amor (1993), A Cicatriz Interior (1972) e o recente O Ciúme (2013), Garrel tem canalizado muito de sua energia criativa nas aparentemente infindáveis possibilidades desse desencontro. A razão para tamanha fertilidade é que o solo desta terra de ninguém é o princípio do drama: um personagem quer algo de outro personagem, que por sua vez deseja uma outra coisa diferente. Esse desenho primário cria solidez estrutural suficiente para permitir que a câmera de Garrel os siga e observe suas reações a esta minúscula semente de conflito. Se nós nos importarmos o suficiente com eles (e eu me importo), isso basta.
As cenas derivadas desse princípio básico são ou afetadas por este intervalo ou terminam ampliando-o, separando ainda mais os personagens em seu desejo comum (ou falso senso de obrigação) de ficar juntos. Se guiado por expectativa (outro elemento chave do drama), este desejo pode ser o coração tanto do entusiasmo da vida como da ruína do amor: estar junto é se sujeitar ao que não se pode conhecer ou controlar; é esta a beleza, e é esta a desgraça. A beleza e a desgraça: dois lados de uma mesma moeda que os filmes de Garrel seguem inspecionando, investigando e aprendendo/ensinando cada vez mais sobre, mas que ainda assim parecem guardar tanto mistério, tanto a ser experimentado e descoberto após o acender das luzes do cinema.
O intervalo de percepção evidente na maior parte de seus filmes é trazido à superfície de diversas maneiras neste novo filme, À Sombra das Mulheres, a começar pelo duplo sentido de seu título. Se a narração onisciente (sem falar no coro Grego sempre incorporado pela câmera e pela montagem) debocha insistentemente de Pierre (Stanislas Merhar) por ele acreditar que estar “à sombra das mulheres” é ser impiedosamente atormentado pela volubilidade de seus desejos, aderindo a uma tendência crescente de auto-vitimização masculina na vida contemporânea, é porque esta mesma sombra se faz presente de maneira mais geral e decisiva em outro aspecto da interação humana: um relacionamento se dá não somente entre as perspectivas cristalinas que duas (ou mais) pessoas têm umas das outras, mas também entre suas sombras, a parte de suas vidas e da forma como elas apreendem este mesmo relacionamento que permanecerá fatalmente obscura, vulnerável porém inconhecível.
Não é acaso que À Sombra das Mulheres parta da mais concreta manifestação dessa sensação: a infidelidade. Pierre se apaixona por Elisabeth (Lena Paugam), mas mantém o caso em segredo de sua parceira de vida e trabalho, Manon (Clotilde Courau). Embora os três mal compartilhem tempo de tela, a natureza triangular do relacionamento é constantemente reforçada pela narração em voz over (por Louis Garrel) e pela própria câmera, aludindo a este terceiro vértice que permanece fora de quadro, à sombra. A separação das vidas duplas levadas pelas personagens é sabotada pela brilhante montagem do filme, que evita transições para aumentar o impacto de seus faux-raccords, recriando continuidade em ações que o protagonista se esforça por manter separadas, reatando relações que ele espera sustentar sem que uma saiba da outra. O amor é do reino dos afetos, e os afetos jamais trafegam por estradas de mão única.
Se o extraordinário O Ciúme já trazia uma aproximação um tanto desconcertante entre Garrel e o cinema de Hong Sang-soo, as relações triangulares de À Sombra das Mulheres avançam com esta improvável conexão, chegando a encontrar humor no processo – sentimento que normalmente não se associa ao mais torturado auteur vivo do cinema francês. O diretor incorpora a técnica de Hong de tecer a trama como uma análise combinatória, amenizando a auto-consciência do dispositivo, mas preservando sua ironia. E se o espectador é o terceiro vértice entre esses muitos pares de gente, é questão de tempo até percebermos que nós também não sabemos de toda a história: Manon também tem um caso extraconjugal, e esta simples informação reforma e reconfigura as relações em que o filme se escora. “Estou descobrindo você. A forma como você fala com os homens”, diz Pierre, depois de descobrir que tem sido traído. “Eu sempre fui assim”, ela responde. “Mas eu não via”, ele diz. E nós também não.
Garrel usa esse princípio do drama como uma coleção de áreas obscuras, de regiões de sombra, para complicar ainda mais os preceitos de visibilidade e fora de campo no cinema – e, com isso, o papel do espectador moderno. A aderência à narração onisciente se põe em contraste à parcialidade da visão, espelhando as relações entre os personagens na relação do próprio filme com o espectador. A percepção de que falta veracidade no material documental filmado por Pierre e Manon é a lição cínica que os personagens têm de aprender (e aprendem?), mas também funciona como um endereçamento ao espectador. Sim, À Sombra das Mulheres é uma farsa, e embora esta palavra não encaixe com facilidade no cinema de Garrel, a imagem mental de que o diretor saiu à rua com sapatos que poderiam passar por seus, mas são de fato de outra pessoa, termina sendo uma das sensações mais apropriadas com a qual podemos sair do cinema. Se o final feliz de O Ciúme parecia ser a maior das tragédias de todo o cinema de Garrel, o cinismo que desponta à sombra deste novo filme ironicamente nos convida a, talvez pela primeira vez, ficar feliz por ele.
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